Rubens Ricupero fala sobre problema da fome

Jornal da Ciência de 31 de Maio de 2004.

Entrevista do secretário-geral da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (Unctad) à Agência de Notícias da UnB

Eis a íntegra da entrevista:

UnB Agência – Nas últimas semanas, o mundo assiste a uma queda-de-braço entre o capital especulativo e as economias de países emergentes, entre eles, o Brasil. Os mercados estão vencendo?

Rubens Ricupero – Estão vencendo nos lugares onde se aceita a ditadura dos mercados. Não estão vencendo a Índia, a China e os países asiáticos que escolheram o caminho da acumulação de reservas. Só é derrotado quem quer. O Brasil, por exemplo, está tentando sair, mas ainda com incertezas quanto ao resultado final porque herdou não só uma herança muito pesada, como uma mentalidade dos economistas que defendem a globalização financeira. Isso é que me faz ter certas dúvidas. Não temos um exército unido, mas sim correntes diferentes onde alguns simpatizam com os inimigos.

UnB Agência – O Brasil, no entanto, tem se empenhado em ampliar seu mercado exterior e seus parceiros comerciais.

Ricupero – Penso que esta é a melhor saída. E ela é viável. No ano passado, o Brasil aumentou as exportações em 21%, quando o comércio internacional cresceu só 4,5 %. Este ano, o comércio mundial deve crescer 8,6% e, em 2005, 10,2%, se as previsões se confirmarem. Então, é provável que o Brasil continue crescendo. Com o crescimento do saldo comercial, o país terá condições de eliminar cada vez mais a dependência dos recursos de fora até chegar a um ponto que eles se tornem tão pequenos que a conspiração dos mercados não terá muito peso.

UnB Agência – Mesmo com esta política econômica?

Ricupero – Desde que haja uma continuação na baixa dos juros, estímulos à economia na busca pela retomada do crescimento e, sobretudo, que haja câmbio.

UnB Agência – O cenário não é dos melhores. Estudos de organismos internacionais mostram que a economia da América Latina – e do Brasil em especial – crescerá menos que a média da economia mundial.

Ricupero – A maior parte dos países que está crescendo pouco são os que têm uma situação semelhante a nossa. É possível o Brasil crescer se continuar neste caminho: flexibilizar o câmbio e acentuar os investimentos.

UnB Agência – Faz dez anos que a agenda do país está totalmente dedicada a assuntos econômicos. O senhor vê alguma chance dessa agenda abrir espaço para a questão do social?

Ricupero – Quando eu era ministro (Fazenda) disse muitas vezes, quase até cansar as pessoas, que a estabilidade era apenas o começo e que não se poderia esperar que a estabilidade estivesse consolidada para fazer as outras coisas. Na época, declarava-se que era necessário prestar atenção às questões sociais ao mesmo tempo em que cuidávamos da economia.

UnB Agência - Em contrapartida, o Brasil se destaca em nível mundial como um grande combatente da fome. Hoje, no mundo, 850 milhões passam fome. Como combater este mal e de que modo outros países observam esta posição brasileira?

Ricupero - O problema da fome no mundo é muito grave. Cito o caso da Etiópia, onde, em poucos dias, chegam a morrer mais de 300 mil pessoas. A perspectiva de solução depende de um esforço internacional muito grande. No Brasil, teoricamente, o problema é mais simples porque não é a Etiópia e possui uma grande produção de alimentos. O problema é distribuição. Aqui, a solução está ligada ao desenvolvimento.

UnB Agência – O terrorismo é o grande obstáculo ao desenvolvimento do mundo?

Ricupero – É no sentido de que ele pode criar uma situação em que a agenda fique limitada a ele. Para nós, brasileiros, não chega a ser uma ameaça, mas podemos ser vítimas indiretas. Hoje em dia, ninguém está dando muita importância aos programas de desenvolvimento, sistemas financeiros mais justos, porque toda a prioridade está voltada para a guerra contra o terror. É preciso evitar que a agenda se transforme em algo unidimensional, uma agenda de um ou dois países.

UnB Agência – O sentimento antiamericano tomou novas formas a partir do 11 de Setembro e da reação dos EUA?

Ricupero – Não diria tanto sentimento antiamericano. O cidadão daquele país foi muito trabalhado pela mídia e pelo governo. Esta é uma política do governo. Tenho esperança que com o debate eleitoral haja alguma evolução.

UnB Agência – Hoje, os EUA pensariam duas vezes antes de invadir o Iraque?

Ricupero – Sim. O que eles estão experimentando lá mostrou que as coisas são mais complicadas do que imaginavam os especialistas que pensavam que tudo se resolvia por meio da força.

UnB Agência – O Brasil debate a adoção de cotas raciais como instrumento de política afirmativa. Qual a sua opinião?

Ricupero – De maneira geral, sou favorável ao uso da ação afirmativa para promover, sobretudo, os afro-brasileiros que são as vítimas da escravidão. Agora, é muito importante que isso seja muito bem desenhado, com uma boa engenharia, para não acabar provocando distorções. Para mim, a melhor ação afirmativa seria uma fórmula ampliada do programa Bolsa-Escola: escolher famílias, sobretudo, dessas minorias e financiar os estudos até a Universidade. O melhor sistema é via educação, criar oportunidades. Mas, não sou perito nisso. Não sei bem como construir isso de modo a evitar distorções. Só para se ter uma idéia, há 100 anos, no RJ, moravam Machado de Assis, Lima Barreto e Cruz e Souza. Hoje em dia, não há dois mulatos e um negro que sejam três figuras ímpares dominantes da literatura brasileira. E, nesses 100 anos, o país cresceu e houve também expansão da educação, sinal de que, pelo decurso do tempo, não se resolve o problema.

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