Dissonância cognitiva

Este artigo merece ser lido na íntegra pois mostra muito bem o que está acontecendo hoje na forma com que se justifica determinadas políticas macroeconômicas. Excelente

Dissonância cognitiva

médico entediou-se com o circunlóquio do paciente: "Olha, seu problema é psicológico, pi-si-co-lógico, viu? Volte para casa e procure relaxar mais". O paciente pôs a viola no saco, mas, quando já ia batendo em retirada, deu meia-volta e contra-atacou: "Mas doutor, se eu sinto, de verdade, algo que eu de fato não tenho, qual o nome dessa doença?". "Dissonância cognitiva", respondeu o médico, já meio agastado. "Todo mundo tem um pouco disso. Vá para casa e pare de pensar."
Não sou psicólogo. Mas todos somos psicológicos. Médico não tem mesmo paciência com as dores do espírito. Um pouco mais de espiritismo não faria mal nos tempos de hoje. Pelo menos ajudaria a dar conforto nos casos de dissonância cognitiva. Um psicólogo (Leon Festinger) que estudou profundamente o assunto publicou em 1957 o livro "A Theory of Cognitive Dissonance", em que esmiuçou esse fenômeno do comportamento humano.
O conceito da dissonância cognitiva é muito interessante e tem alta aplicabilidade na identificação de situações incômodas e até constrangedoras vividas por autoridades econômicas e participantes dos mercados em geral.
Dissonância cognitiva é -me perdoem os especialistas-, por assim dizer, um empastelamento da realidade objetiva. Vivemo-la um pouco todos os dias, mesmo porque seria impossível encarar tudo de frente, tal como é, nu e cru, sem nenhuma pitada de fantasia, de auto-engano, de algum descolamento da materialidade das coisas. Ninguém sabe ao certo, por exemplo, se um determinado traçado de política econômica irá nos levar ao resultado ideal, mas convém aos mercados desenvolver certas crenças que são alimentadas (ou demolidas) pelas certezas emitidas pelas autoridades incumbidas de conduzir o processo.
São pitorescas, embora trágicas, algumas passagens envolvendo as declarações equivocadas de grandes economistas, como Keynes e Irving Fischer, ou dos então presidente do Fed (Federal Reserve), secretário do Tesouro e presidente dos EUA nas suas avaliações subseqüentes ao colapso da Bolsa de Nova York, em 1929. "Isso vai passar logo", "nunca os fundamentos foram tão sólidos", "o governo segue sereno em sua política" não são apenas frases de efeito nem declarações insinceras. São, na pior das hipóteses, dissonância cognitiva. Essa emerge com mais vigor nos momentos mais difíceis do homem, quando o preço da correção do rumo -se essa é possível- se apresenta mais gravoso de que o auto-engano. Corrigir o vício do fumo pode parecer tão duro ao praticante habitual que as manobras mentais de auto-dissuasão tendem a prevalecer, assim como "se parar de fumar, eu engordo".
O país, como um fumante inveterado, se intoxica de tributos de modo galopante. Se "fumava" duas a três carteiras por dia de impostos e contribuições (27% do PIB), hoje, dez anos passados, consome perto de quatro carteiras (37% do PIB). Mas, se perguntar ao dono da fumaça o que ele acha do vício, ele terá contra-alegações tão racionais quanto pouco convincentes. O nosso ministro da Fazenda é um homem racional. Por isso, pensa em compensar a correção monetária da tabela do Imposto de Renda com a imposição de mais uma alíquota, superior à atual de 27,5%, conforme noticiado pela imprensa.
As centrais sindicais pressionam pela correção da tabela, que aliviaria o encurtamento da renda na mão dos assalariados na sua base de representação. Trata-se de uma reivindicação justa, que o presidente da República prometeu atender. Acontece que essa boa vontade não cabe nas contas das projeções da Receita.
O Imposto de Renda tinha dez alíquotas quando fizemos campanha para virar alíquota única. Baixou para duas, um triunfo da simplicidade que agora está ameaçada pela fome da Receita.
Entretanto, para deter o avanço da carga, seria fundamental enfrentar o inevitável corte no campo da despesa pública, que nunca pára de crescer nenhum ano sequer. Cortar gastos correntes é politicamente incorreto. E enfrentar a questão da despesa financeira é considerado tabu, vedada qualquer declaração a respeito, mesmo sendo de mera suspeita sobre o avanço do perigo. Para entender esses bloqueios, ajuda bastante a dissonância cognitiva, valioso alívio para os males de um enfrentamento direto com espinhosas questões da macroeconomia.
A dissonância nos ajudará a lembrar que entre tributar mais ou deixar que o superávit primário resvale para um resultado inferior a 4,25% do PIB não há opção senão enveredar pela escalada tributária, sob pena de os mercados que nos financiam se decepcionarem com a gestão oficial. É bem verdade que mais impostos derrubarão o PIB e destruirão -mais à frente- o frágil equilíbrio do superávit primário. Mas isso é depois. No antes, com um pouco dissonância, dá para empurrar mais carga aos contribuintes.
O mesmo esquema serve para justificar os juros que nos engolem. Pagamos hoje juros de mau pagador, alimentando os medos dos mercados sempre assustados, porque o bom pagador é capaz de qualquer coisa para provar o que é, mesmo quando isso ameaça levá-lo à desonra do seu compromisso no futuro. Isso é dissonância cognitiva, da melhor espécie.
Dissonantes somos todos nós, aqui ou ali. O problema é sério quando a dissonância periga nos arruinar, sob o peso dos mais bondosos argumentos. A crítica precisamos fazê-la, porque o momento é, de novo, muito grave. Porém, num tom carioca, sempre lembrando o que disse o poeta sobre dissonâncias: "Se você disser que eu desafino, amor, saiba que isso em mim provoca imensa dor... (trecho da música "Desafinado", de Antonio Carlos Jobim).
Paulo Rabello de Castro -
55, doutor em economia pela Universidade de Chicago (EUA), é vice-presidente do Instituto Atlântico e chairman da SR Rating, agência brasileira de classificação de riscos de crédito. Escreve às quartas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.
E-mail - rabellodecastro@uol.com.br

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