Rubens Ricupero: Mensagem ao nosso povo - 20/06/2004
Folha de São Paulo - OPINIÃO ECONÔMICA
Mensagem ao nosso povo
RUBENS RICUPERO
"Devemos aceitar a crescente internacionalização dos circuitos monetários e financeiros, com a conseqüente perda de autonomia das decisões, e fazê-lo numa fase em que o protecionismo dos países centrais se reafirma? Teremos de renunciar a uma política de desenvolvimento? Que conseqüências sociais devemos esperar de uma prolongada redução na criação de emprego?"
Escritas com penetrante clarividência por Celso Furtado em 1982, hoje, passados 21 anos do início da crise da dívida e da década perdida, essas frases só exigem insignificante modificação: a retirada dos pontos de interrogação. Quem duvida ainda de que aceitar a internacionalização financeira conduz à perda de autonomia das decisões? Haverá quem insista em crer na possibilidade de ter política de desenvolvimento ou de ver em breve o fim do protecionismo agrícola dos ricos?
Quanto às conseqüências sociais do persistente encolhimento do emprego, basta olhar para as monstruosas chacinas em presídios superlotados para compreender que o país se afunda na desumanidade e na barbarização. É a revanche dos degolados de Canudos, a barbárie que se impõe a uma "civilização" pervertida.
A citação acima fez parte do texto com que a Unctad homenageou Celso Furtado na abertura de sua conferência em São Paulo. Nada mais apropriado, posto que a Unctad partilha com Celso a sina que Maquiavel predestinava aos profetas desarmados: a de terem razão, mas não serem escutados. Aliás, outra das características que a obra furtadiana tem em comum com os profetas é o sopro poético, o poder de fixação e evocação dos títulos: "A Fantasia Organizada", "A Fantasia Desfeita", "Os Ares do Mundo", "A Construção Interrompida".
Depois de respirar esses ares de inteligência crítica, sufoca-se por falta de oxigênio na estratosfera rarefeita em que se teima em manter os juros no país no qual a remuneração dos empréstimos chega a quase um décimo da riqueza produzida. Nessas condições, como esperar que haja investimento suficiente para permitir crescimento sustentável?
Ao receber na conferência a visita de jovens empresários, falei-lhes do que acontece quando se tolera a escravização aos mercados financeiros. Meio século atrás, no momento em que eu chegava à universidade, no ano da eleição de Juscelino, um diploma universitário era praticamente a garantia de bom emprego. Tinha-se a paixão do desenvolvimento, acompanhava-se o cumprimento da meta de produção de barrilha e soda cáustica, de aço e alumínio, com o interesse que ora se dispensa aos pontos do risco da dívida brasileira ou às opacas deliberações de um conselho monetário cinzento e anônimo.
Admirava-se a história dos empreendedores, dos capitães de indústria, que se faziam por esforço próprio, gerando emprego, criando riqueza. Onde estão agora os líderes industriais novos, como era Antônio Ermírio naquela época, os empresários animados de "animal spirit" para afrontar riscos e construir, com invenção e coragem, uma economia que dê trabalho a todos?
Esses líderes já não existem porque, conforme apontava a "Economist" em dossiê de início de 1995 sobre o Brasil, os talentos mais brilhantes, os Ph.D.s em Harvard ou Cambridge vão não para onde o país mais precisa -a indústria, a produção, o governo inteligente-, mas para a especulação financeira. É lá que se encontra o dinheiro fácil e rápido, que esteriliza os melhores e os afoga em riqueza cuja necessária condição é o desemprego e a desgraça para milhões de seus compatriotas. É por essa perversidade que os mercados deliram de exuberância quando o desemprego se agrava e os juros sobem. Quando a pátria está metida no gosto da cobiça, queixava-se Camões, não há mais favor para a invenção e a cultura, mas só uma apagada e vil tristeza.
Um dos poucos que restam dos combatentes da FEB, Celso teve vida cheia e longa o bastante para recordar dias mais luminosos. A saúde não lhe permitindo viajar, enviou mensagem gravada com a voz que primeiro se fez ouvir no ar seco e áspero de Pombal, no coração do sertão paraibano, impregnando-o para sempre da paisagem austera: "Eu sou como o cacto", na autodefinição lacônica e de cheiro de terra calcinada.
Lembrou-nos que "a dimensão política do processo de desenvolvimento é incontornável, qualquer que seja o exercício analítico, que se parta de uma visão microeconômica ou macroeconômica". Prosseguiu mostrando que "o avanço social dos países que lideram esse processo não foi fruto de uma evolução automática e inercial, mas de pressões políticas da população". São essas, acentuou, "que definem o perfil de uma sociedade, e não o valor mercantil da soma de bens e serviços por ela consumidos ou acumulados".
"O verdadeiro desenvolvimento -não o "crescimento econômico" que resulta da mera modernização das elites- só pode existir ali onde houver um projeto social subjacente." Onde estará o nosso projeto?, interpela-nos a voz de Celso Furtado. Ele não pode, é óbvio, resumir-se à luta contra a fome. Será possível construir autêntico projeto de "promoção de todos os homens e do homem como um todo" sobre a base dos contravalores do cassino financeiro?
A bela definição de Maritain, enxuta como as sentenças de Celso, encerra dois conceitos. O primeiro é a universalidade do processo de inclusão, a igualdade sem discriminações entre todos os seres humanos. O segundo é sua qualidade, o ser humano na totalidade inseparável de necessidades materiais e de aspirações de educação, beleza, cultura, valores simbólicos e relações com os outros.
Serão essas metas compatíveis com um mercado que exclui e avilta, que marginaliza e abastarda? Ou "é só quando prevalecem as forças que lutam pela efetiva melhoria das condições de vida da população que o crescimento se transforma em desenvolvimento"? Essa é, acima de todo o demais, a mensagem principal que Celso Furtado e a 11ª Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento, recém-encerrada em São Paulo, dirigem ao nosso povo e a todos os que crêem que um outro e melhor mundo é possível.
Mensagem ao nosso povo
RUBENS RICUPERO
"Devemos aceitar a crescente internacionalização dos circuitos monetários e financeiros, com a conseqüente perda de autonomia das decisões, e fazê-lo numa fase em que o protecionismo dos países centrais se reafirma? Teremos de renunciar a uma política de desenvolvimento? Que conseqüências sociais devemos esperar de uma prolongada redução na criação de emprego?"
Escritas com penetrante clarividência por Celso Furtado em 1982, hoje, passados 21 anos do início da crise da dívida e da década perdida, essas frases só exigem insignificante modificação: a retirada dos pontos de interrogação. Quem duvida ainda de que aceitar a internacionalização financeira conduz à perda de autonomia das decisões? Haverá quem insista em crer na possibilidade de ter política de desenvolvimento ou de ver em breve o fim do protecionismo agrícola dos ricos?
Quanto às conseqüências sociais do persistente encolhimento do emprego, basta olhar para as monstruosas chacinas em presídios superlotados para compreender que o país se afunda na desumanidade e na barbarização. É a revanche dos degolados de Canudos, a barbárie que se impõe a uma "civilização" pervertida.
A citação acima fez parte do texto com que a Unctad homenageou Celso Furtado na abertura de sua conferência em São Paulo. Nada mais apropriado, posto que a Unctad partilha com Celso a sina que Maquiavel predestinava aos profetas desarmados: a de terem razão, mas não serem escutados. Aliás, outra das características que a obra furtadiana tem em comum com os profetas é o sopro poético, o poder de fixação e evocação dos títulos: "A Fantasia Organizada", "A Fantasia Desfeita", "Os Ares do Mundo", "A Construção Interrompida".
Depois de respirar esses ares de inteligência crítica, sufoca-se por falta de oxigênio na estratosfera rarefeita em que se teima em manter os juros no país no qual a remuneração dos empréstimos chega a quase um décimo da riqueza produzida. Nessas condições, como esperar que haja investimento suficiente para permitir crescimento sustentável?
Ao receber na conferência a visita de jovens empresários, falei-lhes do que acontece quando se tolera a escravização aos mercados financeiros. Meio século atrás, no momento em que eu chegava à universidade, no ano da eleição de Juscelino, um diploma universitário era praticamente a garantia de bom emprego. Tinha-se a paixão do desenvolvimento, acompanhava-se o cumprimento da meta de produção de barrilha e soda cáustica, de aço e alumínio, com o interesse que ora se dispensa aos pontos do risco da dívida brasileira ou às opacas deliberações de um conselho monetário cinzento e anônimo.
Admirava-se a história dos empreendedores, dos capitães de indústria, que se faziam por esforço próprio, gerando emprego, criando riqueza. Onde estão agora os líderes industriais novos, como era Antônio Ermírio naquela época, os empresários animados de "animal spirit" para afrontar riscos e construir, com invenção e coragem, uma economia que dê trabalho a todos?
Esses líderes já não existem porque, conforme apontava a "Economist" em dossiê de início de 1995 sobre o Brasil, os talentos mais brilhantes, os Ph.D.s em Harvard ou Cambridge vão não para onde o país mais precisa -a indústria, a produção, o governo inteligente-, mas para a especulação financeira. É lá que se encontra o dinheiro fácil e rápido, que esteriliza os melhores e os afoga em riqueza cuja necessária condição é o desemprego e a desgraça para milhões de seus compatriotas. É por essa perversidade que os mercados deliram de exuberância quando o desemprego se agrava e os juros sobem. Quando a pátria está metida no gosto da cobiça, queixava-se Camões, não há mais favor para a invenção e a cultura, mas só uma apagada e vil tristeza.
Um dos poucos que restam dos combatentes da FEB, Celso teve vida cheia e longa o bastante para recordar dias mais luminosos. A saúde não lhe permitindo viajar, enviou mensagem gravada com a voz que primeiro se fez ouvir no ar seco e áspero de Pombal, no coração do sertão paraibano, impregnando-o para sempre da paisagem austera: "Eu sou como o cacto", na autodefinição lacônica e de cheiro de terra calcinada.
Lembrou-nos que "a dimensão política do processo de desenvolvimento é incontornável, qualquer que seja o exercício analítico, que se parta de uma visão microeconômica ou macroeconômica". Prosseguiu mostrando que "o avanço social dos países que lideram esse processo não foi fruto de uma evolução automática e inercial, mas de pressões políticas da população". São essas, acentuou, "que definem o perfil de uma sociedade, e não o valor mercantil da soma de bens e serviços por ela consumidos ou acumulados".
"O verdadeiro desenvolvimento -não o "crescimento econômico" que resulta da mera modernização das elites- só pode existir ali onde houver um projeto social subjacente." Onde estará o nosso projeto?, interpela-nos a voz de Celso Furtado. Ele não pode, é óbvio, resumir-se à luta contra a fome. Será possível construir autêntico projeto de "promoção de todos os homens e do homem como um todo" sobre a base dos contravalores do cassino financeiro?
A bela definição de Maritain, enxuta como as sentenças de Celso, encerra dois conceitos. O primeiro é a universalidade do processo de inclusão, a igualdade sem discriminações entre todos os seres humanos. O segundo é sua qualidade, o ser humano na totalidade inseparável de necessidades materiais e de aspirações de educação, beleza, cultura, valores simbólicos e relações com os outros.
Serão essas metas compatíveis com um mercado que exclui e avilta, que marginaliza e abastarda? Ou "é só quando prevalecem as forças que lutam pela efetiva melhoria das condições de vida da população que o crescimento se transforma em desenvolvimento"? Essa é, acima de todo o demais, a mensagem principal que Celso Furtado e a 11ª Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento, recém-encerrada em São Paulo, dirigem ao nosso povo e a todos os que crêem que um outro e melhor mundo é possível.
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